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Números: O Livro da Jornada Coletiva e da Revolta Contra a Opressão

Publicada em: 25/09/2025 08:43 -

 

O Livro de Números, longe de ser um mero registro censitário ou um manual de leis arcaicas, é um épico sobre a formação de uma consciência comunal em oposição à opressão. Ele narra a travessia de um povo libertado da escravidão do Egito (símbolo máximo do imperialismo e do capital explorador) em direção a uma terra prometida onde a justiça social deve reinar. A narrativa expõe, com crueza, as tentações contínuas de reconstruir estruturas de poder piramidais, de acumulação e de exclusão – os mesmos vícios da "direita" faraônica que eles haviam deixado para trás.

Capítulo 1: O Censo – A Força não está nos Números, mas na Organização Popular

O primeiro censo (Nm 1) não é uma glorificação do poder militar masculino, como uma leitura superficial pode sugerir. É, na verdade, uma demonstração de organização popular. Contar o povo é o primeiro passo para garantir que ninguém será deixado para trás, que todos terão acesso à porção devida de recursos. É a antítese do individualismo neoliberal; é a comunidade se estruturando para o bem comum. A omissão das mulheres e levitas da contagem militar é uma crítica interna ao texto, mostrando as limitações patriarcais daquela sociedade, que a luta pela justiça social deve constantemente superar.

Capítulos 11-14: As Revoltas – A Legitimidade da Protesta Popular contra a Autoridade

Os capítulos centrais de Números são um manifesto do direito do povo de questionar seus líderes.
O desejo por carne (Nm 11): O povo, cansado do maná (o básico fornecido coletivamente), clama por variedade. Moisés, sobrecarregado, quase entra em colapso. A solução de Deus? Descentralizar o poder. Ele distribui o espírito de liderança entre 70 anciãos (Nm 11:16-17). É uma lição clara: o poder concentrado em uma única figura é insustentável e opressivo, mesmo para o opressor. A verdadeira liderança é horizontal e compartilhada.
A crítica de Miriã e Arão (Nm 12): Miriã e Arão questionam a autoridade exclusiva de Moisés: "Será que o SENHOR tem falado somente por meio de Moisés?". Eles exigem uma liderança mais plural e inclusiva. Embora Miriã seja punida (outra crítica à estrutura patriarcal), o texto valida a pergunta fundamental: o poder profético e de liderança é um monopólio?
Os espias e a terra prometida (Nm 13-14): doze espias são enviados a Canaã. Dez voltam aterrorizados, focando nos "gigantes" (as estruturas de poder estabelecidas, as elites cananeias) e na impossibilidade da vitória. Eles representam a mentalidade reacionária: preferem a segurança da escravidão conhecida aos riscos da liberdade. Dois espias, Josué e Calebe, enxergam uma "terra que mana leite e mel" – uma terra de abundância para todos, não para uns poucos. O povo, influenciado pelo medo propagado pelos dez, se rebela. Deus os condena a vagar no deserto até morrer uma geração inteira presa à mentalidade escravagista. Esta é a metáfora definitiva: não se constrói uma sociedade justa com pessoas que ainda anseiam pela opressão ou que são paralisadas pelo medo da elite.

Capítulo 16: A Revolta de Corá – Uma Crítica à Hierarquia Clerical e ao Privilégio de Casta

A rebelião de Corá, Datã e Abirão é frequentemente usada para conclamar obediência cega. Uma leitura de esquerda, porém, revela seu núcleo radical. Eles se levantam contra Moisés e Arão e declaram: "Todos na comunidade são santos, o SENHOR está no meio de nós. Por que vocês se elevam acima da assembleia do SENHOR?" (Nm 16:3).

Esta é uma das perguntas mais subversivas da Bíblia. É uma acusação direta contra a emergência de uma casta clerical privilegiada que se coloca acima do povo. Eles não demandam poder para si, mas questionam por que o poder não é exercido por toda a comunidade. A punição horrível que sofrem é um alerta do texto sobre a violência com que as estruturas de poder consolidadas respondem a desafios radicais à sua autoridade. A mensagem dupla é crucial: a luta pela horizontalidade é justa, mas o poder estabelecido retaliará com extrema violência para se preservar.

Capítulo 27: As Filhas de Zelofeade – A Luta Feminista pela Reforma Agrária

Em um dos momentos mais revolucionários do Pentateuco, as filhas de Zelofeade (Nm 27:1-11) desafiam a lei patriarcal que impedia mulheres de herdar terra. Elas confrontam Moisés diretamente, argumentando por justiça. Moisés leva o caso a Deus, que dá razão às mulheres e ordena uma reforma na lei.

Este episódio é um marco:
1.  Reforma Agrária: a terra, principal meio de produção, deve ser distribuída equitativamente, não concentrada nas mãos de uma linhagem masculina.
2.  Direitos das Mulheres: é uma vitória do feminismo contra um sistema legal machista.
3.  Lei Divina é Mutável: mostra que as leis, mesmo as consideradas divinas, podem e devem ser alteradas quando perpetram injustiça. A revelação é progressiva e dialoga com a luta dos oprimidos.

Capítulo 35: As Cidades de Refúgio – Justiça Restaurativa contra a Vingança

Enquanto o sistema penal de direita prioriza a punição severa e o encarceramento em massa, Números propõe um modelo alternativo: as cidades de refúgio (Nm 35). Elas eram santuários para quem cometia homicídio não intencional, protegendo-o da vingança familiar (uma forma de justiça privada e violenta).

Este sistema promove:
Devido processo legal: o homicida era julgado pela assembleia, não por um justiceiro.
Proporcionalidade da pena: distinguia entre assassinato premeditado e acidental.
Reabilitação: o autor podia viver na cidade até a morte do sumo sacerdote, simbolizando um recomeço.

É um esboço de uma justiça que protege o vulnerável do ciclo infinito de violência, priorizando a vida e a reintegração sobre a vingança.

Conclusão: A Lição para Hoje

Números é um livro para socialistas, comunistas, progressistas e lutadores pela justiça. Ele ensina que a jornada para a terra prometida (uma sociedade sem classes e opressão) é longa e cheia de retrocessos. O maior inimigo não é o "gigante" (a elite), mas o medo e a mentalidade escravagista internalizados no povo. A luta contra a hierarquia clerical, o patriarcado e a concentração de poder e terra é uma luta divina. A autoridade deve ser sempre questionada e o poder, distribuído. A lei deve servir à vida e à justiça, não à manutenção do poder de uma casta.

Abominar a direita, à luz de Números, é abominar o espírito dos dez espias que preferem a escravidão à luta, é rejeitar o modelo faraônico de acumulação e opressão, e é combater toda hierarquia que ousa se colocar acima da comunidade dos santos, do povo. A terra prometida é coletiva ou não será.

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