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Limitada Teologia do Domínio (Reconstrucionismo Cristão) no contexto brasileiro

Publicada em: 30/06/2025 12:23 - Religião

Reinaldo de Mattos Corrêa*

 

A Teologia do Domínio - Reconstrucionismo Cristão- , corrente teológica que defende a aplicação integral das leis mosaicas, incluindo as penais, como fundamento para a organização sociopolítica contemporânea e a busca de um "domínio" cristão sobre todas as esferas da cultura antes do retorno de Cristo, tem encontrado eco em alguns segmentos evangélicos brasileiros. A proposta de uma sociedade teonomicamente regrada e seu otimismo pós-milenista acerca da cristianização da cultura desafiam paradigmas teológicos tradicionais e levantam questões fundamentais sobre a relação entre fé e poder, lei e graça, Igreja e Estado. Este texto busca analisar criticamente as premissas e implicações desta teologia no complexo e plural contexto sociorreligioso do Brasil, confrontando suas afirmações hermenêuticas, eclesiológicas, éticas e escatológicas com a narrativa bíblica central e as realidades nacionais. Vejamos, algumas questões importantes que revelam as inconsistências da Teologia do Domínio:

I. Hermenêutica e Fundamentação Bíblica:

1.  Como a Teologia do Domínio reconcilia a ênfase na imposição da Lei Mosaica - especialmente as penais - com a declaração paulina de que "Cristo é o fim da lei para justiça de todo aquele que crê" - Romanos 10:4 - e a Nova Aliança estabelecida em Jeremias 31:31-34?

2.  Se o "domínio" em Gênesis 1:26-28 é o mandato fundante, por que Jesus, durante seu ministério terreno, explicitamente rejeitou as tentativas de estabelecer um reino político-terrestre - João 6:15, João 18:36 - e definiu seu reino como "não sendo deste mundo"?

3.  A interpretação pós-milenista da Teologia do Domínio - vitória cultural completa antes da volta de Cristo - não entra em conflito irreconciliável com as advertências neotestamentárias sobre crescente apostasia e perseguição nos últimos tempos - 2 Tessalonicenses 2:3, 2 Timóteo 3:1-5, Mateus 24:9-13?

4.  Como se justifica a seletividade na aplicação da Lei do Antigo Testamento - por exemplo, foco em penalidades, estruturas sociais), ignorando outras centenas de preceitos (dietéticos, cerimoniais, agrícolas - que a mesma Teologia reconhece como cumpridas ou abolidas em Cristo?

5.  A insistência na lei veterotestamentária como padrão para a sociedade moderna não minimiza a radical novidade, a suficiência e a autoridade suprema do ensino ético de Jesus e dos apóstolos no Novo Testamento?

II. Cristologia e a Natureza do Reino:

6.  Se o estabelecimento do "domínio" terreno é central, por que a cruz de Cristo – símbolo máximo de fraqueza, sofrimento e sacrifício, não de poder político imediato – permanece como o evento central da fé cristã e o modelo de discipulado - Filipenses 2:5-8?

7.  Como a Teologia do Domínio interpreta a afirmação de Jesus de que o seu Reino não é deste mundo - João 18:36 - à luz de sua própria agenda de conquista cultural e política deste mundo?

8.  A busca pelo poder político e cultural como via principal para estabelecer o Reino de Deus não inverte a prioridade estabelecida por Jesus: buscar primeiro o Reino de Deus e sua justiça - Mateus 6:33 -, confiando que as demais coisas serão acrescentadas por Deus, segundo sua soberania?

9.  A ênfase no domínio e no triunfo visível não obscurece a doutrina bíblica do "mistério" do Reino - Marcos 4:11 -, que cresce de forma paradoxal, como o grão de mostarda, frequentemente na fraqueza e na obscuridade, até a consumação final?

10. Como a Teologia do Domínio evita o risco de transformar a mensagem do Evangelho – centrada na graça, redenção e reconciliação por intermédio de Cristo – em um projeto político-religioso de poder?

III. Eclesiologia e o Papel da Igreja:

11. A missão primordial da Igreja, conforme definida por Cristo, não é fazer discípulos de todas as nações, batizando e ensinando - Mateus 28:19-20 -, em vez de governar nações ou impor legislações específicas?

12. A fusão entre os objetivos da Igreja e os objetivos do Estado, implícita na Teologia do Domínio, não ameaça a integridade profética da Igreja, comprometendo sua capacidade de denunciar a injustiça e a idolatria dentro de qualquer estrutura de poder?

13. Como a Igreja, ao buscar o "domínio" político, pode evitar repetir os erros históricos das teocracias e das igrejas estatais, que frequentemente levaram à perseguição, à corrupção espiritual e à diluição do Evangelho?

14. A estratégia de conquista cultural/política não desvia recursos, energia e foco da Igreja de sua missão essencialmente espiritual - adoração, discipulado, comunhão, serviço aos necessitados - para uma arena onde sua autoridade é, por definição bíblica, limitada e diferente?

IV. Ética, Poder e Minorias:

15. Como a implementação das leis penais do Antigo Testamento - por exemplo, pena de morte para adultério, homossexualidade, blasfêmia - sob a Teologia do Domínio seria compatível com os princípios evangélicos de graça, perdão, redenção e o valor da vida humana criada à imagem de Deus, mesmo do pecador?

16. Qual seria o status e os direitos de cidadãos não-cristãos - ateus, adeptos de outras religiões, LGBT+, etc. - em uma sociedade brasileira governada explicitamente sob os princípios da Teologia do Domínio? Isso não configura uma teocracia excludente?

17. A busca pelo domínio político não inevitavelmente leva a alianças espúrias, concessões éticas e a corrupção do testemunho cristão em nome do "bem maior" do poder de influência?

18. Como a Teologia do Domínio responde à crítica de que sua visão de poder e controle é fundamentalmente contrária ao espírito de serviço, humildade e amor ao inimigo ensinado por Jesus - Mateus 20:25-28, Mateus 5:43-48?

19. A ênfase no triunfo cultural e político não marginaliza ainda mais os pobres e oprimidos, focando na conquista de poder em vez de priorizar a opção preferencial pelos pobres, clara no ministério de Jesus e nas epístolas?

V. Contexto Brasileiro e Consequências Práticas:

20. Como a Teologia do Domínio, com sua visão frequentemente eurocêntrica de "cultura cristã", dialoga com a complexa realidade cultural, racial e religiosa plural do Brasil, marcada por sincretismos, religiões de matriz africana e tradições indígenas?

21. Como essa teologia interpreta a violenta história de colonização e imposição religiosa no Brasil, que usou justificativas semelhantes de "domínio cristão", à luz dos princípios do Evangelho de amor e respeito?

22. A implementação da Teologia do Domínio no Brasil, um país com profundas desigualdades sociais, não tenderia a legitimar e perpetuar essas desigualdades ao sacralizar uma ordem social baseada em interpretações específicas da lei mosaica, potencialmente desconsiderando a justiça social?

23. Como essa teologia evitaria se tornar uma ferramenta de legitimação teológica para projetos políticos autoritários, corruptos ou contrários aos direitos humanos fundamentais no cenário político brasileiro?

24. A promessa de "domínio" e "bênção nacional" condicionada à implementação de sua agenda política não se assemelha perigosamente à teologia da prosperidade, substituindo a bênção individual pela coletiva, mas mantendo a lógica de barganha com Deus?

VI. Escatologia e Soberania Divina:

25. A crença de que a Igreja deve e pode estabelecer o Reino de Deus na terra através de meios políticos não usurpa a ação exclusiva de Cristo, que retornará pessoalmente para estabelecer seu Reino eterno e perfeito - Apocalipse 19-22?

26. A Teologia do Domínio não incorre no erro do messianismo político, atribuindo à ação humana  - mesmo "cristianizada" - a capacidade de realizar o que só o retorno glorioso de Cristo pode consumar?

27. Como se concilia a visão otimista do progresso inevitável do domínio cristão com a realidade persistente do mal, do pecado e da resistência ao Evangelho, descritos como características da era presente até a Parusia?

28. A obsessão com o controle da sociedade através do poder político não reflete uma falta de fé na soberania de Deus, que age na história de formas misteriosas e frequentemente contrato as expectativas humanas de poder - 1 Coríntios 1:27-29?

VII. Crítica Profética e Autenticidade Evangélica:

29. A Teologia do Domínio não representa, em sua essência, um retorno ao espírito do farisaísmo, que buscava justiça própria e controle religioso-social através da rigidez legal, contra o qual Jesus dirigiu suas críticas mais contundentes?

30. Como essa teologia evita a idolatria do poder, da nação e da cultura, substituindo o Deus revelado em Jesus Cristo por projetos humanos de dominação?

31. A linguagem de "conquista" e "domínio" não é intrinsecamente violenta e contrária ao caráter pacificador e reconciliador do ministério da reconciliação confiado à Igreja - 2 Coríntios 5:18-20?

32. A redução da rica esperança escatológica cristã - novos céus e nova terra - a um projeto político-terreno de "cristianização" da sociedade brasileira atual não empobrece dramaticamente a visão bíblica do futuro?

33. Se Jesus, ao ser tentado pelo diabo com "todos os reinos do mundo e a sua glória" - Mateus 4:8-9 -, rejeitou categoricamente esse caminho de poder político imediato como uma tentação satânica, como a Teologia do Domínio pode afirmar que esse mesmo caminho é agora a vontade de Deus para sua Igreja?

A análise crítica da Teologia do Domínio à luz das Escrituras e da realidade brasileira revela tensões profundas e aparentemente irresolúveis. As objeções hermenêuticas – particularmente a reconciliação da imposição da lei mosaica com a Nova Aliança em Cristo e a natureza "não deste mundo" do Reino proclamado por Jesus – desafiam a fundamentação bíblica. A busca pelo poder político e cultural parece inverter a lógica do Evangelho, centrada na cruz, no serviço e na prioridade do discipulado, arriscando a integridade profética da Igreja e repetindo erros históricos de fusão com o Estado. As implicações éticas, especialmente sobre minorias e a diversidade religiosa brasileira, sugerem o perigo de exclusão e legitimação dem desigualdades sob um manto teocrático. No contexto brasileiro, marcado por sincretismo, desigualdade e uma história de imposição religiosa violenta, o projeto reconstrucionista apresenta-se não apenas como uma leitura questionável da Escritura, mas como uma proposta potencialmente autoritária e contrária ao espírito de serviço, graça e amor ao próximo que caracteriza o ministério de Jesus. A tentação de conquistar "todos os reinos do mundo" pela via política, rejeitada por Cristo no deserto, permanece, segundo esta análise, uma tentação a ser evitada, não um mandato a ser abraçado pela Igreja. A esperança cristã escatológica reside não na construção de um reino terreno pela força da lei, mas na vinda soberana de Cristo, que estabelecerá novos céus e nova terra.

 

*Produtor Rural em Mato Grosso do Sul.

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