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Raízes Invisíveis da Culpa: Análise Sistêmica das Consequências Psicológicas do Grileiro em Mato Grosso do Sul

Publicada em: 15/05/2025 09:03 - Artigos

                            Reinaldo de Mattos Corrêa*

A terra não é apenas solo: é memória viva, arquivo ancestral e espelho das relações humanas. Quando famílias se envolvem na grilagem de terras da União Federal destinadas aos povos indígenas, em Mato Grosso do Sul, não violam apenas leis ou fronteiras geográficas. Rompem, sem saber, a integridade de seu próprio sistema familiar, desencadeando uma cadeia de consequências psicológicas que ecoam por gerações. 

Na perspectiva das Constelações Familiares, toda ação contra a vida — especialmente aquela que nega o direito de existir a um grupo — gera uma dívida sistêmica. O ato de usurpar terras indígenas, carregadas de significados sagrados e históricos, insere nas famílias dos grileiros uma culpa invisível, não declarada, mas profundamente inscrita no inconsciente coletivo. Essa culpa não pertence a um indivíduo, mas à rede de vínculos que o sustenta. 

1. Desordem dos Lugares Sagrados

Os povos Guarani-Kaiowá, expulsos de seus tekoha (lugares de pertencimento), carregam um luto civilizatório. Porém, as famílias que ocupam essas terras, mesmo que movidas por interesses econômicos, herdam uma desordem simbólica: ocupam um espaço que não lhes pertence energeticamente. Na linguagem das Constelações, há um "emaranhado" entre o invasor e o invadido. O solo, impregnado de histórias indígenas, passa a vibrar como um campo de conflito não resolvido. Os descendentes dos grileiros podem desenvolver sintomas inexplicáveis — ansiedade crônica, medo de perda ou uma sensação de "nunca estar em casa" —, reflexos de uma identificação inconsciente com a dor dos excluídos

2. Repetição do Trauma e Inversão de Papéis 

Bert Hellinger ensina que, quando um crime não é reconhecido, o sistema familiar repete padrões até que a justiça simbólica seja restaurada. Filhos ou netos de grileiros podem inconscientemente assumir o papel das vítimas, manifestando autossabotagem, fracassos recorrentes ou até doenças, como se pagassem uma dívida que não contraíram. É comum que membros dessas famílias desenvolvam alianças ocultas com o sofrimento indígena, buscando, por exemplo, trabalhar com direitos humanos ou causas ambientais, em uma tentativa de equilibrar a balança moral. 

3. Fragmentação do Pertencimento 

A terra grilada é um espelho quebrado. Quem a ocupa perde a conexão autêntica com suas próprias raízes. Nas Constelações, a exclusão de um membro (físico ou simbólico) gera caos. Aqui, exclui-se não apenas um povo, mas também a própria noção de ética e reciprocidade. As famílias envolvidas podem experimentar uma crise de identidade: não são mais agricultores ligados à terra, mas usurpadores desconectados de seu propósito original. A prosperidade obtida através da grilagem torna-se um "fruto envenenado", alimentando desconfiança, isolamento e conflitos internos. 

4. Chamado da Reconciliação Sistêmica

A cura, nesse contexto, exige mais que arrependimento individual. Requer um movimento sistêmico de reconhecimento: honrar a história dos povos originários, devolver simbolicamente o que foi tomado e incluir os excluídos no campo emocional da família. Para os grileiros e seus descendentes, isso pode significar apoiar a demarcação de terras, ouvir as vozes indígenas ou simplesmente admitir, em segredo, que a terra nunca lhes pertenceu. 

Conclusão: Terra Como Espelho da Alma Coletiva 

Enquanto o agronegócio em Mato Grosso do Sul lucra com a soja e o gado, as famílias envolvidas na grilagem pagam um preço invisível: sua alma coletiva adoece. A terra indígena, sagrada e resiliente, reflete de volta a desconexão daqueles que a violentam. Na visão sistêmica, só há paz quando o invasor reconhece que a verdadeira herança não está no hectare conquistado, mas na capacidade de curar as fraturas que ele mesmo criou. 
A reconciliação começa quando entendemos que pertencer a um lugar pressupõe pertencer também a uma rede maior — onde os vivos, os mortos e a terra são um só organismo. E que, como dizem os Guarani-Kaiowá, "ñande rekó" (nosso modo de ser) só existe quando todos os modos de ser são respeitados.

* Produtor Rural em Mato Grosso do Sul.

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