Na vastidão do Mato Grosso do Sul, onde a terra sangra sob o conflito entre grileiros e povos originários, há um drama invisível: o luto psíquico das famílias daqueles que roubam terras da União Federal. Sob a aparente prosperidade material, esconde-se uma geografia de angústia, onde o sujeito — individual e coletivo — enfrenta as consequências de um ato que corrói a integridade simbólica do ethos familiar. A psicanálise, ao desvelar o inconsciente, revela que a violência contra a terra indígena é também uma automutilação da alma de quem a perpetua, ecoando nas gerações como um destino cifrado.
### 1. Superego e Economia da Culpa
Freud ensina que o superego, herdeiro do complexo paterno, é o tribunal interno que julga nossos atos. Nas famílias dos grileiros, esse tribunal transforma-se em um teatro de sombras: a riqueza acumulada pela expropriação carrega consigo a assinatura de um crime não confessado. O segredo, guardado a portas fechadas, gera uma culpa difusa, não nomeada, que se infiltra nas relações como um veneno sem antídoto. As crianças, ao herdarem terras marcadas pelo sangue Guarani-Kaiowá, herdam também um fardo transgeracional — perguntas não respondidas sobre a origem da fortuna familiar tornam-se sintomas: insônias, ataques de pânico, ou um ódio inexplicável ao próprio sobrenome.
### 2. Violência Reprimida e Retorno
Lacan diria que o real sempre retorna. A violência contra os corpos indígenas e a terra, embora apagada do discurso familiar, insiste em surgir nas fissuras do cotidiano: pesadelos recorrentes com incêndios florestais, ataques de ira desproporcionais, ou a compulsão por cercar propriedades inexistentes. A supressão do trauma — a consciência implícita de que a "conquista" representou um ato desumanizador — transfigura-se em comportamento inadequado. Filhos, inconscientemente, reencenam a violência dos pais: tornam-se agressores na escola, ou, paradoxalmente, desenvolvem fobias a espaços abertos, como se a terra, na vastidão, os acusasse.
### 3. Ferida Narcísica da Ilegitimidade
A posse ilegítima da terra cria uma ferida narcísica coletiva. A família constrói sua identidade sobre um mito de "pioneirismo" e "trabalho duro", mas, no íntimo, sabe que seu legado é uma ficção. Esse abismo entre o self idealizado e a verdade gera uma fratura no ego, levando a mecanismos de defesa patológicos: negação ("os índios não existiam aqui"), projeção ("o governo é o verdadeiro ladrão") ou racionalização ("é progresso"). A terra, em vez de símbolo de orgulho, torna-se um espelho que reflete a própria ilegitimidade, corroendo o sentimento de pertencimento até à raiz.
### 4. Transmissão do Vazio: Entre Silêncio e Grito
A psicanálise intergeracional de Nicolas Abraham e Maria Torok fala de "fantasmas" — segredos inenarráveis que assombram os descendentes. Nas famílias dos grileiros, o não dito sobre a origem da terra converte-se em um cripta psíquica. Adolescentes, ao descobrirem a verdade em documentos ou histórias locais, enfrentam um dilema ético: trair o clã ou calar-se, internalizando a cumplicidade. Alguns rompem o laço, exilando-se em grandes cidades; outros repetem o padrão, justificando-o como "tradição". Em ambos os casos, o vínculo familiar torna-se um campo de ruínas, onde o amor e a lealdade são contaminados pela dúvida.
### 5. Conclusão: Terra como Espelho da Alma
A cura, para a psicanálise, exige confrontar o recalcado. Para essas famílias, isso significaria reconhecer o roubo como pecado original e restituir a terra — gesto que, embora utópico, seria a única via para dissolver a culpa petrificada. Enquanto isso não ocorre, continuarão a habitar um limbo ético, onde a prosperidade material é uma armadilha dourada. A terra indígena, mais que um território, é um símbolo do Outro recusado; até que esse Outro seja reintegrado no discurso familiar, a psique coletiva permanecerá enraizada no deserto do próprio eu.
Enquanto o Mato Grosso do Sul chora as matas devastadas, as famílias dos grileiros choram, sem saber, a devastação de si mesmas. Na interseção entre ética e inconsciente, só resta uma lei: não se pode roubar a terra sem roubar, primeiro, a própria humanidade.