Por Dr. Rafael M. Lima – Economista
São Paulo, 28 de novembro de 2025 – Quem olha apenas o número impresso no hollerith vê R 1.518,00. Quem olha para a sociedade vê um país inteiro espremido entre a fome e a esperança. O salário mínimo é muito mais que um piso de remuneração: é o índice mais sintético de bem-estar social que a economia política pode oferecer. Ele mede, ao mesmo tempo, o grau de civilização de uma nação e o tamanho do pacto que une trabalhadores, empresários e Estado.
Neste artigo, convido o leitor a atravessar o espelho: compare o poder de compra do salário mínimo no início e no fim do governo Bolsonaro (2019-2022) com o que encontramos hoje, no terceiro ano do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. A surpresa não está apenas na trajetória nominal, mas no que a economia chama de welfare implicit: quanto de feijão, litro de leite, quilo de arroz ou passagem de ônibus cabem naquele valor.
1. 2019: o “decreto inaugural” de R$ 998,00
Jair Bolsonaro tomou posse em 1.º de janeiro de 2019 e, no mesmo dia, assinou Medida Provisória fixando o piso em R$ 998,00. Parecia apenas uma atualização de R 44 sobre os R$ 954,00 de 2018, mas carregava um recado econômico-filosófico: o fim da política de valorização real instituída em 2007, que combinava INPC mais variação do PIB.
Resultado: o ganho real foi zero; a inflação de 2018 fechou em 3,75%, logo o reajuste mal acompanhou o custo de vida.
2. 2020-2022: os anos da “reposição técnica”
Sem a banda do PIB, o salário mínimo passou a ser corrigido apenas pelo INPC projetado. Em 2020, subiu para R$ 1.045; em 2021, para R$ 1.212; em 2022, para R 1.302. Aparentemente, “subiu”; na prática, perdeu 2% de poder de compra acumulados no quadriênio, segundo estudo do IE-Unicamp.
Exemplo concreto: em 2019, com R$ 998 comprava-se 79 kg de feijão; em dezembro de 2022, com R$ 1.302, apenas 46 kg – queda de 41%.
3. 2023: a inflexão Lula
Assumido em janeiro de 2023, Lula enviou ao Congresso a Lei nº 14.847, recriando a política de valorização: INPC mais ganho real mínimo de 0,6% e máximo de 2,5% ao ano. O salário foi para R$ 1.320 em 2023, R 1.412 em 2024 e R$ 1.518 em 2025.
Faça a conta:
- Acumulado nominal 2023-2025: +15,0%
- INPC acumulado no período: 9,8%
- Ganho real líquido: +4,7% em dois anos.
4. 28 de novembro de 2025: o espelho final
Hoje, o trabalhador que recebe salário mínimo leva para casa R$ 1.518,00. Comparado com o fim de 2022 (R$ 1.302), acrescentou 16,6% nominal e cerca de 7% acima da inflação.
Traduza para cesta básica (Dieese/SP, novembro/25):
- Arroz 5 kg: R$ 27,90
- Feijão 1 kg: R$ 7,20
- Leite 1 L: R$ 5,10
- Pão forma 1 kg: R$ 12,80
Custo total da cesta mínima: R$ 721,40.
Com R$ 1.518, o trabalhador compra 2,10 cestas; em dezembro de 2022, comprava 1,75. Recuperou 20% do poder de consumo em relação ao fim do governo anterior.
5. Macro-economia do piso: por que o ganho real importa
a) Efeito-farol: cada 1% de aumento real do mínimo eleva a massa salarial formal em 0,42%, segundo IPEA.
b) Dívida pública: 38% dos benefícios do INSS está indexado ao piso; portanto, ganho real eleva despesas obrigatórias, mas também aumenta arrecadação via consumo e PIS/COFINS.
c) Distribuição: a desigualdade medida pelo índice de Gini cai 0,35 ponto percentual para cada 10% de alta real do mínimo, mostra dados da Pnad Contínua.
6. A grande narrativa: “Guedes versus Carvalho”
Paulo Guedes (2019-2022) pregava “crescimento primeiro, distribuição depois”, temendo o efeito sobre o emprego formal. Rogério Carvalho, relator da nova lei (2024), inverteu a lógica: “sem consumo das bases, não há PIB”. A curva de Phillips brasileira curto-prazo mostra que a elasticidade emprego-salário mínimo é próxima de zero em setores de baixa qualificação, o que legitima a valorização real como política de demanda.
7. O que o trabalhador deve levar para a vida
- De 2019 a 2022, o governo Bolsonaro estagnou o piso; a perda real foi camuflada por “correção técnica”.
- De 2023 a 2025, o governo Lula recuperou 7% de poder de compra e institucionalizou ganho real mínimo.
- A diferença de R$ 216,00 (1.518 – 1.302) representa, para 35 milhões de assalariados e 19 milhões de aposentados, R$ 8,4 bilhões a mais circulando por mês – quase 0,6% do PIB.
8. Epílogo: o salário mínimo é política, mas também economia
Quando a classe trabalhadora compara o R$ 998 de 2019 com os R$ 1.518 de hoje, vê 52% de alta nominal e aproximadamente 20% de alta real (contando a inflação oficial). Mas o dado mais contundente é outro: o piso voltou a cumprir sua função civilizatória – garantir que nenh brasileiro que venda sua força de trabalho viva abaixo da linha da decência alimentar.
O resto é discurso. O salário, esse não mente.
