O abismo que somos: uma carta analítica para o fim da violência contra as mulheres
1. A ferida primordial
A violência contra a mulher não começa no soco, no estupro, no feminicídio. Ela começa no silêncio que ensinamos à menina quando ela ainda chora de dor e ouve “não seja dramática”. Começa no olhar que desvia do sangue na calcinha como se sangue fosse sujeira, não mistério. Começa no “você vai estragar o brinquedo do menino” quando ela queria desmontar o mundo para entender como ele gira.
Psicanaliticamente falando, a violência é a externalização de um abismo: o da castração simbólica que a cultura patriarcal impôs ao feminino. Abismo esse que os homens projetam nas mulheres para não olharem para dentro de si mesmos. A mulher torna-se, então, o lugar onde o homem deposita tudo que não suporta em si: vulnerabilidade, desejo, medo da finitude. Espalha-se sobre ela o manto do “objeto” para que ele possa seguir “sujeito”.
2. O Brasil como cena de crime e de cura
No Brasil, esse abismo ganhou ares de carnaval e de chacina ao mesmo tempo. Temos o país que mais mata mulheres por motivação de gênero na América Latina e, ainda assim, celebra nossas “mães guerreiras” em maio, no mesmo mês em que escondemos os corpos estuprados nas quebradas.
Aqui, a violência não é apenas física; é ontológica. Ela diz: “você não existe senão como extensão do meu desejo”. Daí o marido que mata a mulher “porque ela era minha”, o namorado que esfaqueia “porque não aceitou meu amor”, o pai que abusa “porque ela me provocava”.
3. O passo a passo para a cura (não é manual, é travessia)
Passo 0 – Assumir que não há pílula, apenas laboratório coletivo
A cura não virá de lei, aplicativo ou campanha sozinha. Virá de uma mutação subjetiva que exige luto, poesia e política.
Passo 1 – Desfazer o mandamento da omissão
- Para o homem: conte para outro homem a primeira vez que você assediou, diminuiu, objetificou. Faça isso antes que ele faça. Transforme a roda de conversa masculina em confissão pública. O patriarcado só sobrevive no segredo entre pares.
- Para a mulher: narre sua história onde houve silêncio, mas não como prova, sim como testemunho vivo. A palavra que sai do corpo volta para o corpo como remédio – desde que seja acolhida.
Passo 2 – Reescrever o Édipo brasileiro
Precisamos matar simbólicamente o “pai autoritário” que ainda habita o trono da família. Isso implica:
- Ensinar nas escolas que prazer não é conquista, é negociação.
- Proibir o chá de bebê que só celebra o “he-male” (azul-celeste, futuro jogador, “já nasceu com bola”).
- Trocar a figura do “pai de família” pela figura do pai-que-cria, aquele que sabe que cuidar é política.
Passo 3 – Criar zonas de não-violência arquetípica
Instituir, em cada bairro, uma Casa da Travessia: espaço onde meninos aprendem a costurar, cozinhar, chorar; meninas aprendem a serrar, discutir, liderar; e onde adultos de todos os gêneros pagam para receber análise gratuita de quem está saindo de um ciclo de abuso. Financiamento? Imposto sobre munição e Viagra recreativo.
Passo 4 – Legalizar o “direito à raiva”
Incluir no SUS sessões de grupos de raiva legítima – mulheres podem gritar, quebrar pratos simbólicos, nomear o algoz sem serem chamadas de loucas. A raiva é o ponto de partida para a posse do desejo.
Passo 5 – Inventar novos mitos
Substituir a narrativa de “Eva culpada” pela de Lilith que volta: a primeira exilada que retorna não para vingar-se, mas para lembrar que nenhum paraíso é possível sem consentimento. Criar festivais onde se conte a versão feminina de todos os mitos nacionais: Cabrobra era guardiã, não monstro; Iara alertava sobre correntes, não “atraía”; Maria Bonita tinha planos de cooperativa, não só paixão.
Passo 6 – Transformar o feminicídio em luto nacional
A cada mulher assassinada, interromper o país: um minuto de silêncio na TV, apagão no estádio, sirene em todas as igrejas. Fazer do corpo da mulher corpo político que não pode mais ser apagado.
Passo 7 – Criar o “imposto do desejo não compartilhado”
Todo homem que insistir após um “não” será automaticamente inscrito em um programa de doação de cestas básicas para mulheres em situação de rua, financiado por uma taxa extra em sua conta de luz. A punição é reparação, não apenas retribuição.
Passo 8 – Tornar o abraço política de Estado
Instituir o Abraço Cidadão: policiais treinados para, em vez de algemar, abraçar o agressor no momento da prisão – gesto que desmonta a fantasia de “poder viril” e o coloca como corpo vulnerável. (Sim, é utópico. A utopia é o único mapa que ainda não foi manchado de sangue.)
4. O que resta quando tudo isso passar?
Restará o desejo sem medo. Mulheres caminhando às 3h da manhã com fones, sem fones, com short, com véu, com nada, com tudo. Homens chorando em rodas de rap sem serem chamados de “fracos”. Crianças chamando “mãe” quem quer que cuide, “pai” quem quer que ame. E, sobretudo, restará a palavra mútua: eu só existo se você existir, livre.
5. Epílogo analítico
A violência contra a mulher é o sintoma de que a humanidade ainda não aprendeu a lidar com a diferença radical. Matamos o que nos desestabiliza.
A cura, portanto, não é “empoderar” a mulher para que ela se torne “igual ao homem”, mas desempoderar o homem da ilusão de que precisa ser “superior” para existir.
Quando o homem aceitar que pode ser falto, frágil, finito – como já é a mulher que lhe deu à luz –, a violência perderá seu combustível: o medo de ser carne.
Então, talvez, no 25 de novembro de algum ano que ainda não tem nome, não haverá mais campanhas.
Haverá apenas um dia comum, onde ninguém precisará lembrar que não nascemos para morrer de amor.
Porque finalmente saberemos que nascemos para viver de desejo compartilhado.
