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Rastro de Quarenta Dias (Por Liliana Medeiros)

Publicada em: 19/11/2025 07:27 -

 

Quebrei a primeira vértebra. A atlas. A que segura o mundo. Dizem que o corpo é uma casa, mas o meu, de repente, ficou sem telhado. Um susto, um descuido, um piscar de olhos, e o eixo do meu mundo se rachou.

Os primeiros dias foram um nevoeiro denso de dor. Uma dor que não é um pontada, é uma presença. Ela se instalou na nuca, um peso de chumbo que ditava cada respiração, cada piscar. E com ela, veio o silêncio. As palavras fugiram. A vontade de escrever, que sempre foi meu refúgio, apagou-se. Como escrever quando a própria estrutura que sustenta o pensamento está comprometida? A mente girava, as histórias fervilhavam por dentro, mas não conseguiam fazer a viagem até as mãos. Era como se a fratura tivesse cortado o fio que liga a alma ao papel.

E então, veio o colete. Meu novo exoesqueleto, minha armadura involuntária. Ele me mantém firme, reto, mas ao mesmo tempo é uma prisão de gesso e velcro. Sinto falta de virar o pescoço para ver o mundo pela janela, de abaixar a cabeça num gesto simples de cansaço. Ele me lembra, a cada minuto, que sou frágil.

A dor da fratura era uma coisa. A dor que veio em seguida foi outra. A medicação forte, necessária para conter o fogo na coluna, voltou-se contra mim como um ácido. O estômago pegou fogo, uma queimadura interna que roubou o sabor de tudo. A comida, que era consolo, tornou-se inimiga. O corpo fechou as portas. O apetite foi embora e, com ele, oito quilos da minha própria matéria. Olho no espelho e vejo um rosto mais fino, olhos mais fundos. Vejo os rastros da batalha.

Hoje são quarenta dias. Quarenta dias de uma paciência forçada que estou aprendendo à força. Quarenta dias de aprender que curar é um verbo lento, quase imperceptível. É uma conta regressiva: faltam cinquenta para os noventa. Às vezes, a ansiedade aperta, um desespero mudo de querer pular no tempo, de estar do outro lado disso.

Mas em meio a esse deserto, pequenos oásis. Um gole de água que fica no estômago. Um minuto a mais de sono reparador. A mão que, hoje, segura a canção com um pouco menos de tremor. E este texto. Escrever estas linhas, para você, é a primeira fresta de luz. É o meu jeito de sussurrar para mim mesma: "Você ainda está aqui".

A atlas quebrada vai soldar. O colete, um dia, será uma lembrança incômoda numa foto. O estômago vai se acalmar e os quilos, se for da vontade do corpo, voltarão. E as palavras, essas companheiras desleais que me abandonaram no auge da dor, estão aos poucos voltando para casa.

Elas começam com este relato. O relato de quem segura o próprio céu, um dia de cada vez.

 

 

 

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