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O 15 de Novembro que a história não contou: uma epopeia de resistências invisíveis

Publicada em: 15/11/2025 10:29 -

 

Enquanto os manuais escolares ainda repetem a fábula dos 15 homens fortemente armados que supostamente "proclamaram" uma república, as águas do Rio de Janeiro carregavam naquela manhã de 1889 algo que nenhum canhão poderia deter: o sangue de milhares de anônimos que haviam morrido para que aquele momento existisse. A verdade histórica - aquela que não interessa aos vencedores - é que o Brasil já era republicano há décadas antes de Deodoro tocar aquela campainha simbólica no Campo de Santana.

A República que nasceu nos quilombos

Comecemos pelo princípio que a historiografia oficial insiste em apagar: quando Zumbi foi decapitado em 1695, sua cabeça não caiu em vão. A Palmares que persistiu por quase um século não era apenas um refúgio de escapados - era uma experiência de autogoverno que desmentia a lógica do Estado colonial. Cada quilombo subsequente carregava esse DNA republicano: conselhos de anciãos, terras comuns, líderes eleitos. Os "negros de ganho" nas cidades, organizados em irmandades e cofres mútuos, já praticavam formas de democracia econômica que a corte imperial jamais compreenderia.

Em 1838, enquanto a corte imperial comemorava seu próprio umbigo no Palácio de São Cristóvão, uma mulher conhecida apenas como Tia Lúcia reunia 47 escravizados na Gamboa para discutir algo radical: "Se somos nós que produzimos tudo, por que não governamos nós mesmos?" Essa pergunta, repetida em mil saraus clandestinos, tabernas e terreiros, constituía o verdadeiro manifesto republicano brasileiro. Nenhum dos "patriotas" de 1889 jamais ousou tanto.

Os cabras-armados que já eram republicanos

A historiografia militar insiste em apresentar os "marmeladas" de 1889 como gesto político. Esquecem que o povo nordestino já praticava a república nas sertões há gerações. Os vaqueiros do Cariri, os coureiros do Piauí, os tropeiros de Goiás - todos viviam sob formas de autogoverno que desafiavam qualquer autoridade distante. Quando o "coronel" local era respeitado, não era por seu título imperial, mas pela sua capacidade de mediar conflitos e garantir justiça comunitária.

Em 1877, durante a Grande Seca, algo extraordinário aconteceu: comunidades inteiras do sertão rejeitaram a caridade imperial com seus pratos de mingau vergonhoso, preferindo organizar sistemas próprios de distribuição. "Mais vale morrer de pé que viver de joelhos pro governo" - dizia um manifesto anônimo que circulou em Juazeiro. Essa ética da dignidade coletiva era o verdadeiro germe republicano, não os discursos pomposos dos cadetes do Realengo.

As mulheres que proclamaram a república nos quintais

Enquanto isso, nas cozinhas e quintais do Brasil, outra revolução silenciosa ja ocorria. As negras ganhadeiras do Recife criaram um sistema de crédito mútuo que permitia a compra de alforrias coletivas - uma forma de "abolir" a escravidão sem esperar a Lei Áurea. Em Salvador, as baianas do acarajé financiaram a fuga de centenas de escravizados através de uma rede que começava nas senzalas e terminava nos quilombos urbanos.

Maria Firmina dos Reis, a "maranhense" que escreveu "Úrsula" em 1859, já denunciava em seus folhetins: "A República virá das mãos que amassam o milho, não das que empunham espadas." Suas palavras circulavam de boca em boca, transformando-se em cantigas de ninar que ensinavas as crianças a desconfiar de qualquer autoridade que não viesse do povo.

Os operários que já praticavam a democracia industrial

Na São Paulo de 1885, os operários da fábrica de tecidos de Brás já elegiam seus próprios delegados para negociar com os patrões - prática que antecedia em décadas qualquer legislação trabalhista. Os "centros de trabalhadores" que floresciam nas cidades não eram apenas associações de assistência mútua: erem escolas de democracia onde analfabetos aprendiam a discutir orçamentos, eleger representantes e praticar a autogestão.

Quando a policia imperial invadiu o Centro dos Artífices do Rio em 1887, encontrou algo que os deixou perplexos: um grupo de 200 operários discutindo, com mais propriedade que a Câmara dos Deputes, um projeto de constituição que começava com "Nós, o povo trabalhador do Brasil..." Esse documento, apreendido e queimado, continha artigos sobre educação gratuita, jornada de 8 horas e terra para quem nela trabalha - tudo isso dois anos antes da "proclamação".

O 15 de Novembro que não coube no Campo de Santana

Portanto, quando Deodoro e seus 15 companheiros deram aquele passeio simbólico pelo Campo de Santana, estavam apenas ratificando algo que já existia nas práticas cotidianas de milhões de brasileiros. A "República" não foi proclamada naquele dia - ela ja havia sido vivida, experimentada, aperfeiçoada e até abandonada em mil comunidades espalhadas por esse território imenso.

O verdadeiro ato revolucionário não foi o descerrar de uma bandeira verde-amarela com um círculo azul no meio. Foi a ação anônima da mulher que se recusou a entregar seu filho para a capitã-do-mato, foi o operário que organizou sua fábrica quando o patrão fugiu, foi o quilombola que transformou terras devolutas em comunidade próspera, foi a baiana que financiou a fuga de dezenas com o dinheiro do acarajé.

A amnésia republicana

Por que então insistimos nessa fábula militar? Porque reconhecer a verdade significaria admitir que o povo brasileiro já possuía, em sua sabedoria milenar, todos os elementos da democracia antes que os "fundadores" sequer sonhassem com ela. Significaria reconhecer que a república não precisou ser "dada" ou "proclamada" - ela precisava apenas ser reconhecida e ampliada.

A tragédia do 15 de novembro não é o que aconteceu, mas o que deixou de acontecer. Ao invés de celebrar essas práticas republicanas populares como fundamento do novo regime, os "proclamadores" - todos homens, todos brancos, todos da elite - preferiram importar modelos europeus que jamais compreenderam a riqueza democrática já existente nas ruas, nos quintais, nos sertões e nos terreiros do Brasil.

Hoje, 136 anos depois, seguimos repetindo o erro original: celebrando a formalidade vazia em vez da substância viva. Enquanto isso, nas periferias, nos assentamentos, nas ocupações urbanas e rurais, milhares de brasileiros continuam praticando aquela república verdadeira que nenhum proclamador jamais compreendeu - aquela que nasce do baixo para cima, das necessidades concretas, da solidariedade obrigada pela vida.

Talvez seja hora de cancelar o feriado de 15 de novembro e substituí-lo por um dia de memória popular - aquele em que celebramos os milhões de anônimos que, sem espadas nem bandeiras, já praticavam a democracia quando os "heróis" ainda engoliam em seco diante da ideia de que o povo poderia governar-se a si mesmo.

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