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A Clínica da Mentira: Como Dourados Foi Capturada pelo Delírio Coletivo e Como Despertar do Pesadelo

Publicada em: 10/11/2025 06:55 -

 

Por Dr. Roberto Navarro – Psicanalista e Jornalista*

DOURADOS, 10 de novembro de 2025 – A sala de espera está lotada. Não de pacientes individuais, mas de uma cidade inteira que não sabe que está doente. Homens e mulheres que carregam em seus olhos o mesmo brilho fanático que vi em 2018, mas agora misturado com algo novo: o pânico de quem começa a desconfiar que foi enganado, mas não sabe como sair da armadilha que ajudou a construir.

Sou psicanalista há 25 anos. Nunca vi nada igual. Dourados, minha cidade, transformou-se em um caso clínico de massa. E aqui, entre nós, precisamos falar uma verdade que doi: fomos vítimas da mais sofisticada operação de lavagem cerebral já realizada no interior brasileiro. Não foi com balas ou bombas. Foi com WhatsApp. Foi com mentiras repetidas milhões de vezes até se tornarem "verdades". Foi com medo vendido como esperança.

O Diagnóstico: Dourados sob o Domínio do Delírio Coletivo

O que aconteceu aqui não é política. É psicopatologia em escala urbana. A extrema direita bolsonarista criou em Dourados o que chamamos de "psicose induzida" – um estado onde a realidade foi substituída por uma fantasia coletivamente compartilhada, mas completamente desconectada dos fatos.

Vejo pacientes que acreditam que o ex-presidente é um "messias" enviado por Deus. Não metaforicamente. Literalmente. Um senhor de 68 anos, produtor rural, me disse com lágrimas nos olhos: "Doutor, quando vi ele subir a rampa do Planalto, foi como ver Jesus entrando em Jerusalém". Este homem, que administra 2.000 hectares com racionalidade matemática, perdeu completamente a capacidade de distinguir fé política de fé religiosa.

A técnica foi genial em sua perversidade. Eles transformaram política em religião. E quando política vira religião, não há mais debate possível. Quem critica o líder não é opositor – é herege. É inimigo de Deus. É agente do demônio. Como discutir com quem acredita que você é literalmente possuído por Satanás?

A Máquina de Lavagem Cerebral: Como Funciona a Armadilha

Senti na pele. Criei um grupo de WhatsApp para discutir saúde mental na pandemia. Em 48 horas, estava invadido por "tios do zap" compartilhando "notícias" sobre como as vacinas continham chips 5G. Tentei explicar, com dados, com ciência. Fui chamado de "comunista", "petista", "vendido".

A técnica é sempre a mesma, e é clínicamente perfeita:

1. Medo como porta de entrada: Começam com "estão querendo tomar seus direitos". Medo desperta o sistema límbico, desativa o córtex pré-frontal – a parte do cérebro responsável pelo pensamento crítico.

2. Identificação do inimigo: "É o comunismo", "é o globalismo", "são os gays", "são os índios". O cérebro humano é programado para sobrevivência tribal. Oferecem um inimigo claro para unir o "nós" contra "eles".

3. Repetição até a exaustão: Uma mentira repetida mil vezes vira verdade. É neurociência pura. As sinapses se fortalecem com repetição. Criam literalmente novas conexões neurais baseadas em mentiras.

4. Isolamento do dissidente: Quem questiona é expulso do grupo tribal. E o cérebro humano prefere acreditar em mentiras a ser rejeitado pelo grupo. É sobrevivência instintiva.

5. Oferta de sentido: "Você não é um pobre coitado de Dourados que perdeu o emprego. Você é um guerreiro de Deus lutando contra o mal globalista". Transformam fracasso social em missão divina.

O Caso Clínico: Maria, 42, Ex-Bolsonarista em Recuperação

Maria (nome fictício) entrou em meu consultório há 6 meses. Professora, mãe de três filhos. Estava em estado de choque. "Doutor, eu acordei. Mas agora não sei mais quem sou eu".

Ela havia descoberto, através de seus filhos adolescentes, que havia compartilhado fake news por 4 anos. "Eu achava que estava salvando o Brasil. Descobri que estava destruindo minha própria família. Meu filho gay não me conta mais nada da vida dele. Minha filha foi morar com a avó porque não aguentava mais ouvir que feminista era 'coisa de comunista'".

Maria representa milhares em Dourados. Pessoas que foram vítimas de um crime psicológico em massa. E que agora precisam lidar com o trauma de descobrir que foram usadas como armas contra seus próprios filhos, contra seus próprios interesses.

"Eu votei no cara que prometia acabar com a corrupção. Meu marido é servidor público estadual. Não recebe salário há 5 meses. Eu mesma fiquei desempregada quando a crise chegou. E eu ainda defendia esse governo. Doutor, o que fizeram com minha cabeça?"

O Tratamento: Como Desprogramar o Cérebro Capturado

Não há remédio. Não há cirurgia. O tratamento é doloroso, lento, mas possível. Baseio-me em três pilares:

1. Desconstrução Sistêmica das Crenças: Não ataco diretamente. Faço perguntas. "Você realmente acredita que o comunismo está tomando conta do Brasil? Mostre-me um comunista no seu círculo de convivência". A contradição precisa vir de dentro. O cérebro defende o que cria.

2. Reconexão com a Realidade Local: Trago para a sessão dados de Dourados. "Olhe para sua cidade. O que mudou desde 2018 para melhor? Seu salário aumentou? Seus filhos estão empregados? A saúde melhorou?" A realidade local desmonta fantasias globais.

3. Recriação da Identidade: O maior trauma não é descobrir que foi enganado. É descobrir que perdeu quem era. Precisamos reconstruir identidade própria, não baseada em ódio ao outro, mas em amor próprio real.

Criei um grupo de apoio: "Desprogramados de Dourados". Começamos com 5 pessoas. Hoje são 200. O processo é sempre o mesmo: choque inicial, depressão profunda, raiva, luto, aceitação, reconstrução.

A Desintoxicação: Passo a Passo para Quem Quer Sair

Para você que está lendo e sentindo que algo não está certo, mas tem medo de admitir:

Passo 1: Faça uma dieta de informação. Tire 30 dias de grupos de WhatsApp políticos. Bloqueie perfis extremistas. Volte a ler jornais tradicionais. O cérebro precisa desintoxicar.

Passo 2: Faça a lista da realidade. Escreva no papel: o que melhorou na sua vida desde 2018? O que piorou? Seja honesto. A realidade fala mais alto que retórica.

Passo 3: Reconecte-se com quem você afastou. Aquele parente que parou de falar. Aquele amigo que chamou de "comunista". Peça desculpas. Explique que estava sendo manipulado. A maioria vai entender. Os que não entenderem não importam.

Passo 4: Aceite a vergonha. Sim, você foi enganado. Sim, você ajudou a espalhar mentiras. Mas você também foi vítima. A diferença entre vítima e cúmplice é a consciência. Você está conquistando a sua.

Passo 5: Encontre novo propósito. Não basta parar de acreditar no que é falso. Precisa começar a acreditar no que é verdade. No seu trabalho. Na sua família. Na sua cidade. No Brasil real, não no Brasil fantasia.

A Cura Coletiva: Dourados Pode Ser o Primeiro Caso de Sucesso

Dourados tem tudo para ser o primeiro grande caso de cura coletiva do bolsonarismo. Porque aqui a realidade é implacável. A cidade sangra. O desemprego é real. A fome é real. A perda de direitos é real. E quando a realidade bate forte demais, até o mais sofisticado sistema de lavagem cerebral começa a rachar.

Vejo sinais de esperança. O grupo de apoio crescendo. Pessoas que há um ano me xingavam de comunista hoje me abraçam na rua e sussurram: "Doutor, estou tentando sair dessa. Me ajude". A realidade é o melhor antídoto para o delírio.

Mas precisamos agir rápido. A cidade não aguenta mais. A violência aumentou. Os suicídios aumentaram. As famílias estão destruídas. Precisamos criar centros de desintoxicação ideológica. Precisamos de terapeutas preparados. Precisamos de grupos de apoio em todos os bairros.

O Despertar: Você Não Está Sozinho

Se você chegou até aqui e está sentindo um nó na garganta, se algo dentro de você está dizendo "me identifiquei", se você está com medo de estar ficando louco porque não consegue mais acreditar no que acreditava há um ano, ouça-me: você não está louco. Você está acordando.

O verdadeiro louco é aquele que continua acreditando na mesma coisa esperando resultados diferentes. O verdadeiro louco é aquele que vê a realidade e prefere a fantasia. Você está tendo a coragem de encarar a verdade. É doloroso. Mas é libertador.

Dourados pode ser a primeira cidade a se curar dessa praga. Mas a cura começa com você. Agora. Hoje. Não espere o governo mudar. Não espere o grupo mudar. Mude você. E quando mudar, ajude o próximo. Um por um. Como alcoólicos anônimos. Viciados em ódio precisam de apoio para se livrar do vício.

A cidade inteira está em estado de choque coletivo. Mas o choque pode ser o início da cura. O reconhecimento da doença é o primeiro passo para a cura.

Dourados, é hora de despertar.

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* Dr. Roberto Navarro é psicanalista com 25 anos de experiência e jornalista. 

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