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O Renascimento Hemisférico dos Estados Unidos e a Argentina como laboratório

Publicada em: 25/09/2025 12:57 -

 

Da retórica isolacionista à prática intervencionista, a doutrina Monroe para o século XXI

Um dos paradoxos mais significativos — e potencialmente mais transcendentes — da política exterior estadunidense contemporânea está sendo gestada nos círculos de poder de Washington.

Enquanto a administração Trump-Hegseth projeta ao mundo uma imagem de retirada “estratégica” dos compromissos globais — evidenciada o ceticismo quanto à OTAN, o desprezo pelos “bailes diplomáticos” multilaterais e o lema “America First” —, uma facção intelectual e operacional dentro do próprio aparato de segurança nacional trama cuidadosamente o que poderia vir a ser a política externa mais abertamente intervencionista no hemisfério ocidental em décadas.

Nesse grande tabuleiro de xadrez geoeconômico, a República Argentina, à beira do abismo econômico e político, se apresenta não meramente como um ator passivo, mas como o campo de batalha essencial, funciona de cobaia onde se decidirá se a América Latina está destinada a se tornar um quintal reordenado e disciplinado ou um continente em rebelde confronto com uma ordem unipolar em decadência.

As instruções no rascunho de Colby para a nova teoria Monroe são claras: desacelerar a globalização na forma atual, retirar progressivamente as guarnições distribuídas na Europa e na Ásia, e reagrupar capacidades no continente de origem. O lema, uma adaptação mercantilista de “America First”, é “primeiro a casa, depois o bairro”.

No entanto, a pergunta crítica que surge de imediato é: se o império retira as legiões para fortificar a cidadela, quais mecanismos usará para manter o controle sobre a periferia imediata, esse “bairro” que agora declara prioritário? A resposta não mais se busca nos arsenais do Pentágono, mas sim em um escritório na calle 19 NW, em Washington D.C.: a sede do FMI.

Nenhum país encarna melhor as condições de laboratório para essa nova doutrina de Defesa Nacional 2025 do que a República Argentina. Não é uma vítima acidental das tempestades financeiras globais, mas sim o candidato ideal, o paciente zero da Doutrina Colby, selecionado por uma confluência de fatores que o torna vilmente vulnerável:

  1. Extrema vulnerabilidade financeira: a necessidade desesperada e crônica de dólares por parte da Argentina confere aos Estados Unidos e ao FMI um poder de negociação esmagador, quase absoluto. Um país à beira do default perpétuo, com reservas líquidas negativas, não possui margem de manobra.
  2. Fraqueza política sistêmica: um governo democraticamente eleito, mas à beira da ingovernabilidade, com base parlamentar frágil e legitimidade social corroída por medidas de austeridade, carece de força política para negociar condições ou rejeitar imposições geopolíticas onerosas. Sua própria sobrevivência política depende do próximo desembolso do Tesouro, algo que o torna um ator maleável, disposto a aceitar cláusulas que um governo mais estável rejeitaria de imediato.
  3. Presença chinesa significativa e simbólica: a Argentina cultivou compromissos econômicos profundos com a China, que incluem swaps cambiais, projetos críticos de infraestrutura energética e acordos comerciais de grande porte. Por isso, tornar a Argentina um “sucesso” de contenção chinesa teria valor simbólico e prático enorme. Demonstraria que é possível desengajar uma economia de importância mediana da influência chinesa, enviando uma mensagem dissuasiva a outros países da região, como o Brasil, que contemplam uma diversificação semelhante.

O cenário atual é, portanto, quase um espelho perfeito do manual de coerção. O que poderia levar uma nação nessas condições à mesa de negociações? Seu poder de barganha é inexistente. Sua principal estratégia, como já evidenciado, parece ser uma esperança quase religiosa de que o próximo desembolso do Tesouro chegue antes de explodir o mercado de títulos e desencadear um caos social.

A instrumentalização exige um mecanismo concreto, ágil e que evite os lentos e públicos debates do Congresso. Esse mecanismo existe e possui um precedente histórico revelador: o uso do Fundo de Estabilização Cambial (Exchange Stabilization Fund, ESF) do Tesouro dos EUA. Seu potencial como ferramenta de política externa foi descoberto dramaticamente em 1995, durante a crise do “Efeito Tequila” no México.

Esse mecanismo foi crucial, mas as consequências do resgate mexicano são um aviso sombrio para a Argentina. O pacote de ajuda não evitou uma crise social e econômica profunda:

  • Desvalorização do peso: a medida inicial do governo, antes do resgate, foi deixar o peso flutuar, o que provocou uma depreciação abrupta e massiva. Em questão de dias, a moeda perdeu mais de 100% do seu valor frente ao dólar, passando de 3,4 para mais de 7 pesos por dólar. Isso encareceu brutalmente as importações e as dívidas em moeda estrangeira.
  • Hiperinflação e taxas de juros exorbitantes: a inflação disparou para 52% em 1995, e o banco central elevou as taxas de juros a níveis insustentáveis (até 80 %) para conter a fuga de capitais, sufocando o setor produtivo.
  • Falências generalizadas e socialização das perdas: milhares de empresas faliram e o sistema bancário colapsou, levando à criação do FOBAPROA (Fundo Bancário de Proteção à Poupança), um mecanismo que transferiu dívidas privadas dos bancos para o setor público, socializando perdas e gerando ressentimento social duradouro.
  • Recessão e endividamento crônico: o PIB encolheu 6,2 % em 1995, e o custo do resgate impulsionou a dívida pública a patamares recordes, hipotecando o futuro do país por muitos anos.

O aspecto mais relevante para o caso argentino é que a garantia exigida para o pagamento do México foram as receitas futuras da venda de petróleo da PEMEX, a estatal mexicana. Esse precedente estabelece um paralelo perturbador.

Diante de uma absoluta incapacidade de pagamento por parte da Argentina, seria descabido imaginar que o Tesouro estadunidense, via condicionalidades do FMI, exigisse garantias sobre ativos estratégicos equivalentes? Empresas como a YPF (energia) ou concessões na Vaca Muerta poderiam vir a ser contrapartidas implícitas de um resgate baseado no ESF, transformando a dívida financeira em perda de soberania sobre recursos naturais estratégicos.

Esse processo de coerção financeira requer, para ser bem-sucedido, uma contraparte doméstica conivente ou, ao menos, impotente. É aí que a crise argentina ultrapassa o econômico e se insinua numa profunda decomposição do regime republicano. A decisão da equipe do presidente Milei de promulgar no Boletim Oficial a Lei de Emergência em Deficiência e, ao mesmo tempo, emitir decreto suspendendo sua execução é desse tipo de ato. Essa ação viola o princípio basilar da supremacia constitucional e a separação de poderes. A reação parlamentar foi fraca — uma moção de censura contra o chefe de Gabinete, Guillermo Francos —. A ameaça de impeachment contra o presidente se dissipou na retórica, evidenciando a paralisia legislativa.

Essa paralisia não é acidental. Surge de uma convergência perversa de interesses: a maior parte do espectro político, em maior ou menor grau, subscreve o mesmo programa econômico ditado desde Washington por meio do FMI. O Congresso, dividido e cúmplice, terá de segurar as consequências desse encontro de salvamento Trump-Milei, mas não possui vontade ou poder para alterar seu curso.

Pressupor que a República Popular da China observará passivamente esse cerco geoeconômico em torno de um de seus parceiros estratégicos na América do Sul seria um erro de cálculo monumental. Aqui, o papel do Brasil se torna importante. A China não atuará sozinha; empregará o Brasil como o principal interlocutor regional dentro do bloco, apresentando ao Novo Banco de Desenvolvimento (NBD, o “banco dos BRICS”) uma alternativa crível e menos onerosa ao FMI e ao Banco Mundial.

O NBD pode oferecer linhas de crédito em yuan ou em moedas locais, liberando os países da “armadilha do dólar” e das condicionalidades políticas associadas aos resgates ocidentais.

A história argentina, com sua proverbial tendência a repetir tragédias como farsa, oferece um paralelo instrutivo. No início do século XX, as elites governantes optaram por uma aliança privilegiada com o poder hegemônico da época, o Império Britânico, cristalizada no Pacto Roca-Runciman de 1933. Esse pacto, que trocava acesso ao mercado britânico por controle sobre ferrovias e política econômica argentina, deixou o país entre os perdedores após a Segunda Guerra Mundial, quando o centro de gravidade global se deslocou definitivamente para Washington.

Hoje, a Argentina parece empenhada em repetir o mesmo erro histórico. Em vez de se posicionar estrategicamente no bloco euroasiático em ascensão — com o qual é complementar em termos de recursos naturais e necessidades de investimento —, parece destinada a alinhar-se, de forma quase gratuita e por miopia de suas elites, a um poder hegemônico em relativo declínio.

A Doutrina Colby e o experimento em andamento com o FMI podem, no curto prazo, disciplinar a economia argentina. Mas, no longo prazo, arriscam condenar o país a ficar, mais uma vez, do lado errado da história — isolado das dinâmicas mais vivas da economia global e preso à órbita de um quintal cada vez mais conflituoso e rebelde. O laboratório está aberto, e o mundo observa se o paciente zero sobreviverá ao experimento.

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