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Silvio Tendler: O Cineasta dos Sonhos Interrompidos e o Legado de uma Memória (Por Tácito Loureiro)

Publicada em: 06/09/2025 08:46 -

 

No dia 5 de setembro de 2025, o cinema brasileiro perdeu um de seus mais proeminentes e engajados nomes: Silvio Tendler. Aos 75 anos, o cineasta, documentarista, historiador e professor deixou um vazio imenso, mas também um legado cinematográfico e intelectual que transcende gerações. Conhecido carinhosamente como "o cineasta dos vencidos" ou "o cineasta dos sonhos interrompidos", Tendler dedicou sua vida a resgatar e eternizar a memória de figuras e movimentos que moldaram a história do Brasil, muitas vezes silenciados ou esquecidos pela narrativa oficial. Sua obra não é apenas um registro histórico, mas um convite à reflexão crítica e à valorização da memória como ferramenta de transformação social.

Uma Trajetória Marcada pelo Engajamento e pela História

A jornada de Silvio Tendler no universo cinematográfico começou em meados da década de 1960, no efervescente movimento cineclubista do Rio de Janeiro. Desde cedo, seu olhar estava voltado para as questões sociais e políticas do país. Em 1968, como presidente da Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro, ele realizou seu primeiro documentário, abordando a Revolta da Chibata e a figura do marinheiro João Cândido. A repressão da ditadura militar, que destruiu os negativos originais do filme, foi um prenúncio do compromisso de Tendler com a verdade e a resistência, características que marcariam toda a sua filmografia.

Após um breve período no curso de Direito na PUC-Rio e enfrentando um Inquérito Policial Militar por sua militância, Tendler buscou refúgio e aprofundamento em suas paixões. Em 1970, no Chile, ele se engajou em projetos culturais do governo de Salvador Allende, um período que certamente influenciou sua visão de um cinema a serviço da sociedade. Em 1972, a França se tornou seu novo lar, onde se inseriu em um círculo de documentaristas influentes, como Chris Marker e Jean Rouch. Sua participação no coletivo que produziu La Spirale (1975), uma análise contundente do golpe de Estado no Chile, demonstrava sua capacidade de transitar entre o local e o global, sempre com um olhar crítico e engajado. Em Paris, sua formação em História pela Universidade Paris VII e seu mestrado no seminário "Cinema e História" com Marc Ferro, com uma tese sobre Joris Ivens, solidificaram sua base teórica e metodológica para a produção de documentários históricos.

O Retorno ao Brasil e a Consolidação de um Estilo

O retorno de Tendler ao Brasil em 1976 marcou o início de uma fase prolífica e icônica em sua carreira. Em um período de transição da ditadura militar para a democracia, seus documentários desempenharam um papel fundamental no resgate da memória e na construção de uma narrativa contra-hegemônica. Filmes como Os Anos JK – Uma Trajetória Política (1980) e Jango (1984) não foram apenas sucessos de bilheteria, atraindo centenas de milhares de espectadores, mas também se tornaram marcos políticos. Eles contrapunham o otimismo do período pré-1964 à sisudez do regime militar, oferecendo ao público uma perspectiva diferente da história oficial. A "Trilogia Presidencial" seria completada anos depois com Tancredo: A Travessia (2011), consolidando sua abordagem sobre a liderança política brasileira.

Em 1981, Tendler fundou a Caliban Produções Cinematográficas, que se tornou uma referência no cinema documental historiográfico. Curiosamente, no mesmo ano, ele dirigiu O Mundo Mágico dos Trapalhões, um sucesso de bilheteria que demonstrava sua versatilidade e capacidade de dialogar com diferentes públicos, sem abrir mão de sua essência. Fiel à sua perspectiva de esquerda, Tendler desenvolveu um estilo de "documentarista autor", onde suas convicções e interpretações da história eram a força motriz de suas obras. Sua filmografia abrangeu figuras diversas, desde Josué de Castro e Milton Santos até Carlos Marighella, sempre buscando dar voz aos que foram marginalizados ou silenciados.

Um de seus projetos mais ambiciosos, Utopia e Barbárie (2009), levou quase duas décadas para ser concluído. Este filme é um afresco da segunda metade do século XX, com depoimentos de intelectuais de peso como Augusto Boal e Susan Sontag, e representa um mergulho profundo nas contradições e esperanças de um período turbulento. Entre 2011 e 2014, a Trilogia da Terra abordou questões cruciais como a questão agrária e os perigos dos agrotóxicos, evidenciando seu compromisso com temas contemporâneos e urgentes.

O Legado de um Mestre e Ativista

Além de sua notável carreira cinematográfica, Silvio Tendler foi um acadêmico e ativista incansável. Desde 1979, ele foi professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, formando gerações de cineastas e pensadores. Sua atuação política e institucional foi igualmente marcante: presidiu a Associação Brasileira de Cineastas, foi membro fundador da Fundação do Novo Cinema Latino-Americano, atuou como Secretário de Cultura e Esporte do Distrito Federal e coordenador de audiovisual na UNESCO. Sua vida foi um testemunho de que a arte e o engajamento social podem e devem caminhar juntos.

Nos seus anos finais, Tendler enfrentou bravamente as complicações de uma neuropatia diabética, que o deixou tetraplégico em 2011. No entanto, sua resiliência e paixão pelo cinema o impulsionaram a uma notável recuperação, que foi documentada em A Arte do Renascimento (2015), de Noilton Nunes. Essa fase de sua vida apenas reforçou a imagem de um homem que, mesmo diante das adversidades, nunca abandonou sua arte e seu compromisso com a vida.

Silvio Tendler nos deixou um legado inestimável. Seus filmes são mais do que obras cinematográficas; são documentos vivos da história brasileira, ferramentas de conscientização e inspiração para as futuras gerações. Ele nos ensinou que o cinema pode ser uma poderosa arma na luta pela memória, pela justiça social e pela construção de um futuro mais justo e igualitário. Seu estilo engajado, crítico e acessível continuará a inspirar e provocar reflexão, mantendo viva a chama dos "sonhos interrompidos" que ele tão brilhantemente retratou. O cinema brasileiro e a sociedade como um todo são eternamente gratos a Silvio Tendler, o mestre que transformou a história em arte e a memória em legado.

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