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Terra Inconsciente: Cicatrizes Psíquicas nas Famílias dos Grileiros e Somatização do Conflito (por Reinaldo de Mattos Corrêa)

Publicada em: 17/05/2025 10:09 - Artigos

Na vastidão árida do Mato Grosso do Sul, onde o gado avança sobre territórios sagrados e o aço das cercas corta a memória ancestral, há uma guerra invisível sendo travada não apenas no campo, mas nas mentes daqueles que perpetram a grilagem. A Psiquiatria, ao desvendar as camadas do inconsciente coletivo, revela um paradoxo perturbador: as famílias dos grileiros, ainda que cúmplices ou silenciosas, carregam nas estruturas psíquicas feridas tão profundas quanto as deixadas na terra roubada. 

Culpa que Habita os Interstícios do Silêncio

A grilagem não é apenas um crime fundiário; é um ato de violência simbólica que desestrutura a noção de pertencimento. Para as famílias envolvidas, a ilegalidade torna-se um segredo herdado, uma sombra que contamina os laços afetivos. Crianças crescem ouvindo histórias distorcidas de "conquista", enquanto internalizam a dissonância entre o discurso familiar e o grito dos povos originários. A psiquiatria identifica aqui um trauma transgeracional: a incapacidade de elaborar a culpa coletiva gera sintomas como ansiedade generalizada, depressão atípica e comportamentos autodestrutivos. O segredo, não dito, transforma-se em um tumor psíquico que metastatiza na forma de medo crônico — medo da punição, da rejeição social, ou pior, do confronto com a própria humanidade dilacerada. 

Corrosão do Ethos Familiar

Em comunidades onde a grilagem é normalizada, a moralidade torna-se um território pantanoso. A racionalização do crime ("É para o nosso sustento") funciona como um mecanismo de defesa frágil, semelhante à negação vista em vícios. Entretanto, quando a mídia expõe a violência contra os Guarani-Kaiowá ou quando a Justiça avança, esse castelo de mentiras desmorona. Surge então o estresse pós-traumático secundário: mães que insonizam imaginando filhos presos, esposas que carregam o fardo de fortunas manchadas de sangue, jovens que fogem para cidades grandes, tentando apagar o sobrenome associado à infâmia. A família, célula máter da sociedade, torna-se uma cela de angústia. 

Síndrome do Espólio: Quando a Terra Infecta a Alma

A psiquiatria forense aponta um fenômeno peculiar: muitos grileiros e seus descendentes desenvolvem uma identidade fragmentada. Eles sabem que sua "riqueza" brota de um solo envenenado, mas não podem admiti-lo sem desintegrar o próprio ego. Essa cisão manifesta-se em sintomas psicossomáticos — úlceras que não cicatrizam, hipertensão resistente, pânicos noturnos —, como se o corpo exigisse reparação pelo que a mente insiste em calar. Não raro, filhos dessas famílias, em surtos de lucidez, abandonam heranças ou aderem a causas ambientalistas, num ato desesperado de autoexpiação

Espelho Indígena: Projeção do Inimigo Interno 

O ódio aos povos originários, frequentemente incutido nessas famílias, é, sob a lente psicanalítica, uma projeção do ódio a si mesmas. Ao desumanizar o indígena, o grileiro tenta apagar o conflito ético que o consome. Essa dinâmica perversa alimenta transtornos de personalidade antissocial e narcisista, onde a falta de empatia é sintoma, não causa. Quando um pai ensina ao filho que "índio atrapalha o progresso", está também ensinando a desumanizar partes de si — a compaixão, a vulnerabilidade, a conexão com a terra que um dia foi lar, não mercadoria. 

Ruptura e Cura: Possibilidade do Novo Amanhecer 

A desintoxicação psíquica dessas famílias exige mais que arrependimento; demanda um luto pela mentira. Grupos terapêuticos focados em justiça restaurativa poderiam mediá-las com vítimas indígenas, não para buscar perdão imediato, mas para reumanizar ambos os lados. A psiquiatria comunitária tem aqui um papel revolucionário: tratar a terra como paciente, reconhecendo que sua devastação é sintoma de uma psicopatologia social maior. 

Enquanto o Brasil não enfrentar essas feridas invisíveis, o ciclo de violência seguirá se replicando, como um gene defeituoso passado de geração em geração. A cura começa quando admitimos: nenhum latifúndio do mundo vale uma alma em pedaços.

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