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Dourados: a canção do pajé

Publicada em: 18/03/2025 06:38 - Artigos

Era uma vez uma cidade chamada Dourados, onde o sol se deitava sobre a terra vermelha, pintando o céu com cores que pareciam sair de um sonho. Mas não era apenas o sol que fazia brilhar aquela região; eram as histórias, os passos antigos, as vozes dos ancestrais que ainda ecoavam nas árvores e nos rios. Dourados, conhecida como a "capital indígena do Brasil", guardava no coração um tesouro invisível aos olhos de muitos: a herança milenar dos povos originários. Um legado que, embora silenciado pelo tempo, pulsava vivo nas raízes da terra e no coração daqueles que sabiam escutar.

Naquela manhã quente de março, enquanto o trânsito engolia ruas e avenidas, um menino chamado Lucas caminhava distraído pelo centro da cidade. Ele tinha 12 anos e vivia fascinado pelas lendas que a avó, Dona Maria, contava antes de dormir. Lendas de pajés poderosos, de guerreiros corajosos e de espíritos que protegiam os territórios indígenas. Para ele, aquelas histórias eram mais reais do que qualquer coisa vista na televisão ou lida nos livros escolares. Eram como sementes plantadas em sua alma, que germinavam em sonhos vívidos e perguntas sem resposta.

Mas nem todos em Dourados pensavam assim. Para muitos, os indígenas eram apenas "aqueles que vivem nas aldeias", figuras distantes, quase invisíveis no cotidiano urbano. Havia quem falasse mal das terras demarcadas, dos recursos destinados às comunidades nativas, como se fossem privilégios injustos. Eram vozes altas, mas vazias, que ecoavam sem compreender a profundidade da história que pisavam. Lucas nunca entendeu essa indiferença.

Desde pequeno, sentia-se conectado à natureza, ao vento que soprava entre os galhos das árvores e ao som das chuvas que caíam sobre os telhados. A avó dele dizia que isso acontecia porque ele carregava "o sangue da floresta". Um dia, ela revelou algo ainda mais surpreendente: o bisavô de Lucas fora um líder kaiowá, um homem sábio que lutara para preservar a cultura de seu povo contra as invasões e os desmatamentos.

Aquela revelação mudou tudo para Lucas. Ele começou a enxergar Dourados de outra forma. Não era apenas uma cidade moderna, com shoppings, escolas e estádios. Era também um lugar sagrado, onde cada pedra, cada rio, cada montanha guardava memórias de um tempo em que a humanidade vivia em harmonia com a Terra. Mas essa nova visão trouxe consigo uma inquietação. Lucas sentia que precisava fazer algo, embora não soubesse ao certo o quê.

Certo dia, durante uma excursão escolar, Lucas visitou a Aldeia Bororó, uma das comunidades indígenas próximas à cidade. Ao chegar lá, ficou impressionado com a simplicidade e a beleza do local. As casas tradicionais, feitas de palha e madeira, contrastavam com os prédios altos que ele via todos os dias. As crianças corriam descalças, rindo e cantando músicas que pareciam vir do vento. O cheiro da comida sendo preparada ao ar livre misturava-se ao aroma das plantas medicinais secando ao sol. Era como se o tempo tivesse parado ali, preservando algo que o resto do mundo havia esquecido.

Foi então que conheceu Tupã, um jovem pajé que já estava sendo preparado desde criança para ser o guardião das tradições de seu povo. Tupã tinha olhos profundos, como se pudesse ver além do mundo físico. Quando Lucas se aproximou timidamente, o pajé sorriu e disse:

— Você é diferente, garoto. Consigo sentir isso. O teu coração amoroso fala a língua da terra.

Lucas ficou sem palavras. Nunca havia conversado com alguém que entendesse tão claramente o que ele sentia. Durante horas, Tupã contou histórias sobre os antepassados, sobre as batalhas travadas para proteger as terras e sobre os ensinamentos que ainda guiavam a vida da comunidade. Falou sobre a importância de respeitar a natureza, de ouvir o canto dos pássaros e o murmúrio das águas.

— Nossa missão — disse Tupã — não é apenas sobreviver, mas lembrar ao mundo que somos parte de algo maior. Somos filhos da mesma mãe, irmãos da mesma terra.

Aquelas palavras tocaram Lucas profundamente. Ele percebeu que, embora vivesse na cidade, também era responsável por cuidar daquele legado. Quando voltou para casa, decidiu fazer algo diferente. Começou a estudar mais sobre os povos indígenas, a aprender palavras em guarani e a compartilhar com os amigos o que havia descoberto. Organizou apresentações na escola, mostrando vídeos e fotografias das aldeias, explicando a importância das tradições e combatendo os preconceitos que muitos alimentavam.

No início, enfrentou resistência. Alguns colegas zombavam dele, dizendo que "isso não era importante" ou que "os índios deveriam se adaptar ao mundo moderno". Um dia, durante uma apresentação, um grupo de alunos começou a vaiar Lucas, chamando-o de "índio de apartamento". Ele sentiu um nó na garganta, mas lembrou das palavras de Tupã: "A mudança começa devagar, quase imperceptível, até ganhar força." Com o apoio de alguns professores e da avó, Lucas persistiu. Aos poucos, começou a conquistar aliados. Uma colega, Ana, se interessou pelas histórias e o ajudou a organizar um clube de estudos sobre culturas indígenas. Outros alunos, inicialmente céticos, começaram a questionar os próprios preconceitos.

Anos depois, quando Lucas já era um jovem adulto e jurista com atuação internacional, Dourados começou a mudar. A população, antes marcada pelo racismo e pela indiferença, evoluiu. A cidade passou a valorizar cada vez mais a presença dos povos indígenas, participando de festivais culturais, aprendendo sobre as tradições ancestrais e apoiando iniciativas de preservação ambiental lideradas pelas comunidades nativas. As escolas incluíram disciplinas sobre a História Indígena no currículo, e as terras griladas foram devolvidas aos indígenas graças à intervenção da Organização das Nações Unidas (ONU). Os grileiros foram presos e obrigados a indenizar os povos indígenas, e o agronegócio foi substituído pela agroecologia. As terras de Dourados foram declaradas áreas de segurança alimentar nacional, e o agronegócio foi proibido. Projetos sociais uniram moradores urbanos e aldeões em busca de um futuro sustentável.

Tudo isso começou com um menino curioso, que escutou as histórias da avó e encontrou na sabedoria de um pajé a inspiração para transformar sua cidade. Hoje, quando o sol se põe sobre Dourados, iluminando as copas das árvores e tingindo o horizonte de dourado, é possível ouvir, no sussurro do vento, a canção do pajé. Uma canção que fala de respeito, união e amor pela terra que todos chamamos de lar.

E assim, Dourados em 2050 continua sendo muito mais do que uma cidade. É um convite à reflexão, um lembrete de que, independentemente de onde viemos, somos todos parte de uma mesma história.

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