Guimarães Rosa, em Campo Geral, parte integrante de Corpo de Baile (1956), apresenta-nos o sertão que transcende o folclórico e o pitoresco para descortinar as entranhas do mundo onde a opressão, a exclusão e as contradições sociais se expressam na tessitura do cotidiano. A história de Miguilim, menino sertanejo que vive na fictícia Mutum, é um microcosmo de uma sociedade desigual e marcada pela violência estrutural. Sob uma perspectiva esquerdista, Campo Geral pode ser lido como a denúncia lírica do sistema que naturaliza a miséria e a injustiça, ao mesmo tempo em que aponta, nas frestas da opressão, a potência da resistência e da transformação.
### Miguilim e Consciência de Classe em Formação
Miguilim é a criança sensível e introspectiva, cujas percepções do mundo ao redor nos são apresentadas pelo fluxo narrativo impregnado de lirismo e subjetividade. Rosa nos coloca diante da realidade brutal: a pobreza, a exploração e a violência que estruturam a vida sertaneja. No entanto, Miguilim não tem, a princípio, a clareza do que significa estar inserido nessa ordem social. Sua visão limitada e infantil reflete a alienação típica de quem nasce em um sistema que naturaliza as desigualdades. A casa de Mutum, marcada pela precariedade e pela rigidez patriarcal, é o reflexo de uma estrutura social que oprime tanto material quanto simbolicamente.
A alienação de Miguilim, entretanto, não é estática. O menino passa por um processo de conscientização que, embora sutil, é profundamente significativo. O choque da morte de Dito, seu irmão mais íntimo e figura de solidariedade em meio à aridez da vida, é um momento de ruptura. A perda de Dito não é apenas a perda de um ente querido, mas a confrontação com a fragilidade e a violência do mundo ao seu redor. A dor de Miguilim, ao mesmo tempo em que o desestabiliza, o força a enxergar além do limitado horizonte de Mutum.
### Sertão como Espaço de Exclusão e Resistência
O sertão de Guimarães Rosa não é um espaço idílico ou romantizado. Em Campo Geral, ele é palco de uma exclusão histórica que condena seus habitantes a uma vida de privações. A terra seca e árida é metáfora da ausência de oportunidades e da exploração que marca a relação entre os trabalhadores rurais e uma estrutura agrária concentradora. É significativo que os moradores de Mutum vivam em isolamento, tanto geográfico quanto simbólico. Eles são invisibilizados por um sistema que os exclui das dinâmicas econômicas e políticas centrais do País.
No entanto, é nesse mesmo espaço de exclusão que Rosa encontra a semente da resistência. A solidariedade entre os irmãos Miguilim e Dito, o afeto que permeia as relações familiares, mesmo diante de suas contradições, e a capacidade de imaginar um mundo diferente são gestos subversivos em uma realidade que tenta esmagá-los. A visão de Miguilim, ao final da narrativa, ganha uma literalidade simbólica quando ele descobre que não é cego, como acreditava, mas míope. O par de óculos que lhe é dado por um médico é mais do que um recurso para corrigir sua visão física: é uma metáfora da possibilidade de enxergar o mundo com clareza, de compreender as estruturas que o oprimem e de imaginar uma saída.
### Estética como Política: Rosa e Humanismo Crítico
A opção estética de Guimarães Rosa por uma linguagem experimental, por uma narrativa que flerta com o fluxo de consciência e por uma abordagem lírica não é despolitizada. Pelo contrário, é nessa escolha que se revela o caráter profundamente humanista de sua obra. Rosa não apresenta soluções fáceis nem apela para o panfletário. Ele nos convida a mergulhar na subjetividade de Miguilim, a sentir suas dores e alegrias, a perceber as nuances de um mundo que é, ao mesmo tempo, belo e cruel. Esse mergulho, longe de nos alienar, nos coloca em contato direto com as contradições de uma sociedade marcada pela desigualdade.
Ao humanizar os habitantes de Mutum, Rosa desafia a lógica desumanizadora do capitalismo, que reduz os sujeitos a números e estatísticas. Ele nos lembra que cada Miguilim, cada Dito, cada morador do sertão tem uma história, uma subjetividade, um mundo interior rico e complexo. Essa humanização é, em si, um ato político, uma forma de resistir à lógica que invisibiliza e marginaliza os mais pobres.
### Conclusão: Miguilim e Utopia do Amanhã
Guimarães Rosa, ainda que não tenha sido um militante político, criou a obra profundamente comprometida com a denúncia das injustiças sociais e com a valorização dos oprimidos. Miguilim, ao final do texto, não se torna o revolucionário, mas carrega em si a semente da utopia. Sua nova visão de mundo, mediada pelos óculos, simboliza a possibilidade de transformação, a abertura para o futuro em que as estruturas que oprimem possam ser questionadas e superadas.
Guimarães Rosa, com a linguagem inovadora e a sensibilidade para as dores e as belezas do humano, nos entrega, em Campo Geral, a obra que transcende o regionalismo para se tornar universal. É um chamado à empatia, à solidariedade e à luta por um mundo mais justo. Miguilim, o menino que aprendeu a ver, nos convida a abrir os olhos para as injustiças do nosso tempo e a imaginar, junto com ele, um sertão que seja, finalmente, do tamanho dos sonhos dos habitantes.
