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### Drama da Fome e Espectro do Capital: Leitura de "Os Ratos", de Dyonélio Machado

Publicada em: 28/12/2024 10:47 - Famosos

Introdução

Poucas obras da literatura brasileira conseguem capturar, com tamanha intensidade e profundidade, o esmagamento do ser humano pelas engrenagens do capital como Os Ratos (1935), de Dyonélio Machado. Este romance, que se desenrola em um único dia na vida do modesto funcionário público Naziazeno Barbosa, atravessa as fronteiras do realismo psicológico para se erguer como uma poderosa metáfora das estruturas opressoras que moldam e deformam a existência do homem comum. Ao analisarmos a narrativa sob uma perspectiva marxista, fica evidente que Os Ratos não é apenas um retrato íntimo da angústia individual, mas uma denúncia aguda da violência estrutural que permeia o capitalismo periférico brasileiro.

#### O Sistema e o Homem: A Alienação em Carne Viva

Naziazeno é, antes de tudo, uma vítima. Seu drama não é apenas o de um homem endividado que corre desesperadamente para pagar um bilhete de leite; é o drama do trabalhador alienado, esmagado pela máquina impessoal do sistema econômico, cujas engrenagens não reconhecem rostos nem histórias.

A dívida que pesa sobre seus ombros é a materialização de uma relação social perversa: o empréstimo que ele contraiu para suprir suas necessidades básicas é, na verdade, um instrumento de controle, um laço que o prende à lógica do capital.

A jornada de Naziazeno, marcada pelo desespero crescente, revela um homem tragado por um sistema que não lhe deixa saídas. Ele não possui os meios de produção, tampouco o controle sobre sua própria força de trabalho. Sua vida é uma sequência de compromissos e humilhações que o desumanizam gradativamente. O bilhete de leite, objeto aparentemente trivial que catalisa toda a narrativa, não é apenas um símbolo da fome literal, mas da fome estrutural, da precariedade que define a existência do proletariado. Assim, Machado expõe a alienação em sua forma mais crua: a separação entre o homem e as condições de sua subsistência.

#### A Fome como Linguagem Política

A fome em Os Ratos é mais do que uma sensação física; é uma força narrativa que organiza o mundo de Naziazeno. Ela governa seus pensamentos, seus movimentos, suas interações. Não se trata de uma fome metafórica, mas de uma fome concreta, visceral, inescapável, que denuncia a falência de um sistema econômico incapaz de garantir o básico para a sobrevivência de seus sujeitos.

Na tradição literária brasileira, a fome sempre foi um tema central, especialmente nas obras que se dedicam a retratar as contradições de um país marcado pela desigualdade estrutural. Mas, em Os Ratos, a fome não é apenas uma consequência da miséria; é um mecanismo de dominação. Ela impõe silêncio, resignação, obediência. Naziazeno não é livre para pensar ou agir fora do espectro de sua necessidade imediata. Sua liberdade é ilusória; ele está encurralado, como um rato em um labirinto sem saída.

Machado, ao construir esse quadro opressor, não apenas retrata a miséria, mas denuncia as condições que a produzem. A fome de Naziazeno não é fruto de uma falha moral ou individual, mas da lógica predatória de um sistema que transforma tudo em mercadoria, inclusive o leite que deveria alimentar seu filho.

#### O Labirinto Urbano e a Desumanização do Espaço

A cidade em Os Ratos é um personagem à parte, uma entidade fria, indiferente, que amplifica a sensação de opressão vivida por Naziazeno. Suas ruas, seus prédios, seus becos funcionam como um labirinto, um espaço que confunde e aprisiona. A cidade não oferece refúgio, apenas obstáculos e ameaças. É o espaço da modernidade capitalista, onde o ser humano é reduzido a uma peça na engrenagem, um número, uma função.

Ao descrever a cidade como um espaço de desumanização, Machado antecipa debates que se tornariam centrais no pensamento crítico do século XX. A urbanização desenfreada, a perda dos laços comunitários, a mercantilização do espaço público – todos esses elementos estão presentes na obra e contribuem para a construção de uma atmosfera de claustrofobia social. A cidade, em Os Ratos, não é um lugar de convivência, mas de solidão e competição, onde cada indivíduo luta para sobreviver enquanto outros observam, indiferentes.

#### A Luta de Classes em Silêncio

Embora Naziazeno não verbalize sua condição em termos políticos, sua trajetória é uma representação clara da luta de classes. Ele é o proletário, o trabalhador que vive sob o jugo das dívidas e da exploração; seus credores e empregadores representam a burguesia, que se beneficia de sua miséria. A relação é de antagonismo, mas também de dependência: Naziazeno precisa do sistema tanto quanto o sistema se alimenta de sua precariedade.

A ausência de uma consciência de classe explícita em Naziazeno não diminui o caráter político da narrativa. Pelo contrário, essa ausência é, ela mesma, uma denúncia. A alienação não é apenas econômica, mas ideológica. Naziazeno é incapaz de enxergar a totalidade do sistema que o oprime; ele está preso às suas demandas imediatas, à urgência do bilhete de leite, à necessidade de pagar a dívida. Sua luta não é contra o sistema, mas dentro dele, e é exatamente essa luta que o esmaga.

#### Conclusão: A Literatura como Arma

Os Ratos é uma obra que transcende seu tempo. Ao retratar com maestria a angústia individual de Naziazeno, Dyonélio Machado nos oferece um retrato universal da opressão estrutural que define a vida sob o capitalismo. Sua narrativa é um grito sufocado, uma denúncia que reverbera muito além das páginas do livro.

Os Ratos se torna mais do que um romance psicológico; é uma arma contra a naturalização da miséria, uma convocação à reflexão e à ação. Ao expor as contradições de um sistema que transforma necessidades básicas em fontes de lucro, Machado nos lembra que a fome, a dívida e a alienação não são inevitáveis. Elas são produtos de uma estrutura que pode – e deve – ser transformada.

Naziazeno, no final de sua jornada, não encontra redenção. Sua dívida persiste, sua fome permanece. Mas nós, leitores, somos confrontados com uma escolha: aceitar a lógica que o condena ou lutar para subvertê-la. E, nesse sentido, Os Ratos é mais do que literatura; é uma chamada à insurreição popular.

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